Hoje inauguro uma nova área no blog, num setor que me diz muito por reunir duas paixões: a filosofia e a dança. Hoje escrevo e partilho convosco a minha primeira crítica (no bom sentido da palavra) da dança. O alvo é o espetáculo intitulado "Unbounded", de Romulus Neagu que estreou no Teatro Viriato no passado dia 27 de setembro pelas 21h30.
Começo pelo figurino, simples, discreto e prático, não se tratasse de umas calças de fato de treino com uma camisola de algodão que a meio do espetáculo é retirada, servindo para limpar as gotas de suor que escorrem pelo rosto do intérprete extenuado pela azáfama coreográfica que pretende retratar o processo de individualização no contexto social e, analogamente, no contexto artístico. Mas já la vamos... Antes, devo ainda sublinhar o local onde a peça foi apresentada. No palco, com uma aproximação ao público sem marcação de lugares e desde logo João Santiago relembrava-nos que antes de se dar o clique da "ação" a peça já estava ali, à nossa frente, pronta e (pro)ativa. O intérprete começa sentado numa cadeira, de lado do palco, olhando em frente, calma e tranquilamente. Levanta-se, dirige-se para o centro do palco e inicia movimentos leves que exploram a sua cinesfera. Torções dos membros superiores são repetidas, partilhando momentos com as linhas retas que estes mesmos membros vão explorando. À primeira vista, dava a impressão que estávamos num momento de exploração do próprio corpo, da investigação dos limites dos membros, da procura do espaço que o corpo (pode) ocupa(r). Mas era mais do que isso, tratava-se de uma busca do seu espaço, enquanto pessoa e enquanto intérprete. O jogo de luzes suave, reafirmava as posições do intérprete que, sempre com um rosto passivo nos fazia focar no seu corpo, objetificado e presente enquanto forma e conteúdo de uma exploração que ia para lá do visível. Pude constatar que existiram três partes bem definidas e delineadas, contudo, gostaria um dia de conversar e confirmar esta minha interpretação...
A primeira parte foi tão delicada que o nível médio foi o mais explorado, com as torções dos braços, as linhas retas dirigidas para as diversas direções e nos três planos e ainda um controlo exímio do corpo que o fazia parecer inaudível mas semelhante a um tronco secular.
Uma segunda parte explorou o nível inferior, já com uma maior abertura dimensional e com um exímio trabalho de chão. Cada passo, cada movimento, cada suspiro, cada sopro, faziam-nos pensar na coerência e consistência de tudo o que víamos, pois era como se todos os passos se unissem e fossem só um. Numa visão holística (e como a sinopse do espetáculo nos remetia para o desenvolvimento humano e a criação artística) podia-se assistir a uma tentativa (bem conseguida) de dar forma a esse processo, um processo contínuo, tal como o movimento que também em si era ininterrupto. Do trabalho de chão destaca-se também os momentos de apoio facial invertido que estancavam uma imagem mas, mais do que isso, colocavam em suspenso qualquer tentativa de azáfama. Os movimentos que os membros inferiores faziam, leve e suspensamente, nesta posição punham a nossa visão e compreensão em câmara lenta, um slow motion perfeito que por vezes tanto desejamos ter na nossa vida, no tal "desenvolvimento humano". Destaco ainda neste segundo momento do espetáculo os saltos que nos faziam viajar para o nível alto e voar com o intérprete para a relação do indivíduo com a própria vida, cheia de desafios que por vezes nos fazem querer voar. Poéticas de parte, a segunda parte ficou ainda marcada pela desconstrução das posições de braços codificadas da dança clássica, sendo ali renovadas e reformuladas. Quereria o artista perguntar-nos até que ponto poderemos questionar pré-conceitos ou conhecimentos admitidos como certos? Quereria o intérprete questionar os limites da nossa inventividade? Ou quereria o performer indicar-nos apenas que podemos ser criativos com a tradição que nos é legada, sem que isso seja algo que nos determine mas apenas algo que nos condiciona?
Finalmente, na terceira parte, voltamos ao tempo suspenso, com um jogo de luzes (ainda mais) incrível que projetava caminhos estreitos e retos no chão e que se entrecruzavam. O intérprete termina a peça com o tronco nu, saindo a caminhar do palco, cansado mas obstinado na sua tarefa de ser ele próprio. Se UNBOUNDED me fez querer explorar os limites do meu corpo e procurar o meu próprio espaço, Romulus Neagu e João Santiago fizeram com que viesse, não só no caminho para casa como ainda hoje, com uma pergunta na cabeça: Quais são os limites entre o bailarino e o indivíduo que o habita? Até que ponto é que o indivíduo que dança, ali no palco, não contamina com as suas crenças e experiências, o artista que deve representar? Será bom deixarmos que o artista que somos influencie o ser humano que devemos ser, ou o contrário? Pensemos nestas questões e aplaudamos UNBOUNDED e mais uma encomenda excelente do Teatro Viriato.
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