domingo, 9 de abril de 2017

Ter ou ser?

Hoje trago-vos um artigo acerca da minha leitura do livro “Ter ou Ser”*, de Erich Fromm.
Neste sentido, ao invés de vos falar apenas sobre um capítulo ou uma ideia, atrevo-me numa abordagem geral da obra, tal como o próprio título indaga.
No âmbito do Ensino de Filosofia, este livro pode ser apresentado como sugestão de leitura para o ponto 2. “Os valores – Análise e compreensão da experiência valorativa”, da segunda unidade do Programa Nacional de Filosofia.
O livro aborda um enaltecimento da vertente ser da vida, que mais parece esquecida, numa sociedade que se rege fundamentalmente pelo modo ter. O autor expõe a sua perspetiva, comparando sempre os dois modos de existência, nomeadamente através de um repasso por autores como Mestre Eckhart, Karl Marx e ensinamentos de Jesus ou Buda. No fundo e apesar da obra datar de 1999, estamos perante um conjunto de argumentos que nos alertam para uma urgente alteração de atitude nos dias de hoje.
Vejamos,

Ter, ao que parece, é uma função normal da vida: para viver necessitamos de ter coisas. Numa cultura em que o objetivo supremo é o ter (…) pareceria normal que a própria essência de ser fosse o ter: quem não tem nada não é ninguém.” (Erich Fromm, p.25)

Vivemos numa cultura centrada no ter, isto é, numa sociedade capitalista que visa o máximo consumo. O objetivo é o de ter tudo e quanto mais melhor. Nesta sociedade, só se é pessoa em função das coisas que se possui. E como tal, nunca há um ponto de satisfação. A pessoa tem um desejo desmedido pelo consumo, que lhe é incutido. Tornámo-nos a tal ponto obsessivos com o ter que até transformamos a natureza de acordo com os nossos interesses (Que se lixe a ecologia!).
Sobre isto, e aludindo ao artigo deste blog “O duelo das ciências e o ponto de vista de um astrofísico”, veja-se como é análoga a distinção ter ou ser, à distinção entre ciências da natureza e as ciências do espírito. Se as ciências do espírito se dedicam à reflexão sobre o que a realidade nos oferece e as ciências da natureza são vocacionadas para a vertente prática e técnica, até que ponto hoje em dia não estaremos a abdicar de um ato tão importante, como o pensar? Não será necessário o ser para o ter, assim como são necessárias as ciências sociais para as ciências naturais?
A diferença entre uma sociedade que se rege pelo ter e uma sociedade que se rege pelo ser, é a diferença que se estabelece entre uma sociedade centrada nas coisas e uma sociedade centrada nas pessoas.
Estamos de tal modo embrenhados nisto, que Erich Fromm nos dá até a pensar a medida em que proferimos o verbo ter de modo inconsciente: «tenho uma mulher e dois filhos», «tenho um bom casamento» (ao invés de sou feliz no meu casamento). E dizemo-lo num tal modo de alienação, como se qualquer uma dessas coisas fosse passível de ser possuída.  

O sujeito não sou eu mas eu sou o que tenho. A minha propriedade constitui o meu Eu e a minha identidade. O pensamento subjacente à afirmação «Eu sou eu» é «Eu sou eu porque tenho X» - sendo X a representação de todos os objetos e pessoas com quem me relaciono através do meu poder de os controlar, de os tornar permanente meus.Quase todos sabemos mais sobre o modo ter do que sobre o modo ser. (…) O ter refere-se a coisas e as coisas são definidas e descritíveis. O ser refere-se à experiência, e a experiência humana é, por princípio, indescritível. «Ser» requer libertarmo-nos do nosso egocentrismo e egoísmo (…). Mas para muitas pessoas, abandonar a linha de orientação do ter é muito difícil. (…) E a verdade é que não têm tudo o que querem e querem aquilo que não têm.” (Erich Fromm, pp.80 - 104.)

Em função do poder dado pela posse de coisas, os seres humanos “perderam a capacidade de amar e substituíram-no pelo desejo de sacrificar as suas próprias vidas” (Erich Fromm, p.105). Olho à minha volto e o que vejo são pessoas ávidas pelas suas propriedades e que não vivem, mas que apenas sobrevivem para as poder manter e assegurar.
Vejo pessoas a perder o melhor da vida, apenas para poderem dizer que aquilo é seu. Guerreiam-se, matam-se, andam anos em tribunais e ficam soberbas com tanto poderio. (Isto como se quando morressem levassem tudo consigo). A avidez e o egocentrismo elevaram-se a tal ponto, em função do consumo e do lucro que os atos de egoísmo passaram a ser a regra e os atos de solidariedade a exceção.

“Os indivíduos do ter, usufruem da segurança apenas por necessidade, porque a sua extrema insegurança os leva a depender do que têm: dinheiro, prestígio, o seu ego (…). Mas o que será deles se perderem o que têm? Pois, com efeito, tudo o que se tem pode ser perdido. (…) Se eu sou o que eu tenho e se o que eu tenho se perde, então quem sou eu?” (Erich Fromm, p.109)

Em contrapartida, no modo ser não há nada a perder. Porque eu sou o que sou e não o que tenho. A base do ser apoia-se no caráter.

“O exemplo mais relevante de satisfação, sem desejo de possuir aquilo que nos satisfaz, pode encontrar-se nas relações interpessoais. (…) Os indivíduos centrados no ter querem possuir a pessoa de quem gostam ou admiram.” (Erich Fromm, pp.111-112).

Cada um quer ter o outro só para si, de onde surge o ciúme e as relações opressivas e cheias de conflitos.
E aqui não resisto a lembrar os contínuos homicídios conjugais em Portugal, que se regem pela eterna justificação: - «Se não és minha não és de mais ninguém!». Sabeis que a violência doméstica (23 mortes) e o crime patrimonial (14 mortes) foram os dois maiores móbeis de homicídios em Portugal, no ano de 2016? *(Dados da APAV, disponível aqui)
Denota-se assim que a sofreguidão pela posse da outra pessoa está acima de tudo. A pessoa deixa de ser livre para ser de alguém.
Uma outra distinção entre os dois modos, pode ser caraterizada em função do tempo. “O modo ser existe aqui e agora. (…) No modo ter estamos ligados ao que acumulámos no passado: dinheiro, terras, fama, estatuto social (…) «Eu sou o que fui.»”( Erich Fromm, p.125). Sobre isto, permitam-me a título de exemplo enunciar a reportagem Vidas Suspensas, da Sic, em que no segundo vídeo é dito «Cada uma destas duas mulheres luta por aquilo que julga ser seu», e em que uma delas refere que apenas quer o que é seu, sublinhando ainda que só se quer ver livre de tudo isso.
E agora, e a uma voz mais pessoal, pergunto: Justifica-se a sobrevivência pela propriedade? É isto que eu quero para a minha vida? Quero levar uma vida toda a lutar só para que algo seja meu? Qual a importância da propriedade? Não será mais simples viajar pelo mundo fora e ser pobre em bens materiais?

Ao ler este livro, lembrei-me que vivo numa geração que lentamente se demarca da geração dos nossos pais. Veja-se por exemplo uma notícia acerca dos jovens se endividarem cada vez menos para comprarem casa, onde é referido que “Os jovens passaram a encara a residência fixa de outra forma. Hoje em dia, não só por questões económicas, temos pessoas que apostam na vertente humana, na vertente da experiência, despojados de bens materiais, mas ricos na ambição de conhecer o mundo e aproveitar a vida.
Com isto, pus-me a pensar, quererei eu endividar-me para o resto da vida, matar-me a trabalhar por algo ser meu apenas no meu fim de vida (quando eu já só passar mais tempo num lar ou num hospital, do que na “minha própria casa”)? Quererei lutar todos os meses por pagar algo que nunca chegarei a usufruir com descanso? E quando viverei?
Com este livro, dei por mim a pensar: Quererei eu comprar casa? Isso é mesmo o que necessito? E quando eu morrer, será que ninguém se vai matar por ela?
Este livro deu-me uma certeza: quero morrer a ser. Não quero morrer por uma herança, nem por uma casa, nem por um pedaço de terra.
*FROMM, Erich. Ter ou Ser. Trad. de Isabel Fraga, Lisboa: Editorial Presença, 1999.
Exercício Prático para a sala de aula: Dois alunos poderiam encenar uma pequena peça teatral, onde um deles fosse rico e o outro pobre, e de modo espontâneo um teria que elogiar quais as vantagens da vida do outro. Os restantes alunos poderiam acompanhar este exercício com uma ficha de trabalho. No final do exercício poder-se-ia dividir o quadro para de um lado se apontarem as vantagens de ser pobre e do outro, as vantagens de se ser rico. Esta atividade poderia servir de ponto introdutório para estimular a construção da pirâmide de valores de cada um dos alunos.


Susana Pais

(Licenciada em Filosofia com Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).

Sem comentários:

Enviar um comentário