Além dos povos parecerem ter memória curta e esquecerem-se de sofrimentos atrozes como os associados à II Guerra Mundial, são muitas as situações que hoje em dia nos fazem refletir (ou deveriam fazer) sobre a aproximação à crueldade e maldade associadas à governação hitleriana.
Numa altura em que presenciamos a ascensão de Trump ao poder, o Brexit, os avanços da extrema direita na Europa, a eminência de uma guerra entre a América e a Coreia do Norte, que eclode apenas para testar o poderio e teimosia de cada uma das potências; a guerra na Síria; a crise dos refugiados a nível mundial; é urgente PENSAR!
No fim de contas,
“A verdade ganha mais com os erros daquele que, sem o estudo e a preparação necessários, pensa por si do que com as opiniões verdadeiras daqueles que só as têm porque se impedem a si mesmos de pensar. (…) Já houve, e talvez volte a haver, grandes pensadores individuais numa atmosfera geral de escravatura mental. Mas nunca houve, nem alguma vez haverá, nessa atmosfera, um povo intelectualmente ativo.” (MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006, p.75.)
Neste sentido, trago hoje a análise e desbravamento de uma notícia, entre muitas outras que nos assolam, vem relembrar-nos que vivemos no limiar entre uma mentalidade que se afirma moderna e atos e pensamentos que apenas se podem apelidar de retrógrados: Gays atirados para campos de concentração
Foi este o título que encontrei de uma notícia, não do século XX, mas no dia 19 de abril de 2017. Após mais alguma pesquisa, encontrei mais informação (embora em português do Brasil) aqui e aqui.
A notícia refere-se à descoberta de uma prisão ilegal que serve para deter e torturar gays, na Chechénia (República da Federação Russa). A descoberta é comprovada através de vários testemunhos que confirmam inclusive algumas mortes. É referido que não se sabe há quanto tempo a situação possa estar a durar e por quanto tempo mais irá permanecer, sem a imputação de responsabilidades, quer diretas ou indiretas. Os dirigentes políticos descartam-se de responsabilidades, negando a existência deste tipo de campos. O presidente checheno chega mesmo a afirmar que não há homossexuais na Chechénia e se os houvesse, seriam deportados.
Ora, numa análise atenta, filosofemos.
- Com que direito se pode restringir o direito à vida, consoante a orientação sexual?
- Se antes se ambicionava uma supremacia da raça ariana, permitiremos agora uma supremacia de heterossexuais em pleno mundo cosmopolita?
- Com que direito se pode torturar até à morte em prol da cultura vigente?
- E as restantes culturas não têm uma palavra de ordem?
- Criar campos de concentração para gays, é errado ou é relativo?
Sabendo que não estamos a falar do passado mas sim do presente, importa urgir um pensamento crítico e filosófico que exponha a questão retratada.
Primeiramente, do ponto de vista do etnocentrismo, ao avaliar a situação do mediante o prisma cultural daquele país, é legítimo a abolição e não manifestação de comportamentos homossexuais, dado que isso faz parte da sua identidade, e é uma norma (supostamente moral) vigente. No entanto, este comportamento identitário é um meio de dominação que pode levar ao extermínio de grupos HUMANOS.
Por outro lado, avaliando a situação do ponto de vista do relativismo cultural, as práticas sucedem-se na continuidade de hábitos e tradições, enquadrando-se na cultura vigente e só no seio dessa mesma cultura podem ser criticados e julgados. Portanto, neste sentido, nós portugueses e ocidentais estaríamos impedidos de condenar a criação destes campos de concentração e de criticar atos que embora aos nossos olhos pudessem parecer imundos e macabros, do ponto de vista intrinsecamente identitário da cultura vigente são moralmente corretos e aceitáveis, respeitando a tradição e hábitos que a caracterizam.
Sendo assim, qual o limite da tolerância? Os homossexuais merecem estar todos em campos de concentração? Ou é nosso dever agir e condenar os atos de uma outra cultura? O direito à vida não se sobrepõe aos valores culturais?
Claramente, estamos perante um caso que viola o bem-estar das pessoas envolvidas e põe em causa a dignidade e integridade da humanidade. Urge falar-se de critérios transubjetivos, que se sobreponham à relatividade e diversidade de culturas e que tomem como primeira conta os direitos humanos.
“Os atos do tipo praticados pela Alemanha nazi contra judeus, ciganos e homossexuais (…) não são elementos de uma cultura distintiva que valha a pena preservar, e não é imperialista afirmar que lhes falta o elemento de consideração pelos outros que se exige a qualquer ética justificável.” (SINGER, Peter. Um só mundo. A ética da globalização. Lisboa: Gradiva, 2004, pp.195-196.)
Como Peter Singer reconhece, é a aceitação pelos demais que justifica o poder da ética. Relembrando-nos o imperativo categórico de Kant: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela, Lisboa: Edições 70, 1991, p.68.)
Imaginem agora que por acaso os vossos filhos são homossexuais, quereríamos nós que todos os homossexuais fossem mandados para campos de concentração?
É urgente sobretudo pensar, para bem agir! Agir em prol da liberdade, agir em prol de nós, HOMENS! “O meu futuro será de vergonha se o meu presente for de indiferença.” in Aristides – O Musical
Não fiquem indiferentes, assinem a petição para acabar com esta prática discriminatória e desumana, aqui.
Nota: Na medida em que nesta notícia se aborda a tortura, morte e preconceito contra os homossexuais, a mesma lógica pode-se debater face a outros grupos e situações que são menosprezados e banidos nos dias de hoje. São disso exemplo as mediáticas discussões acerca do acolhimento dos refugiados ou comportamentos que assolam os direitos humanos em países da África ou até o exemplo do tratamento das mulheres na Arábia Saudita.
Susana Pais
(Licenciada em Filosofia com Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).
Exercício prático para sala de aula: Colocar as 5 questões enumeradas no início deste texto no quadro e cada aluno deve escolher uma para responder oralmente e expressar o seu pensamento crítico e posição pessoal, devidamente fundamentada. No fim de toda a turma partilhar os seus argumentos e de o professor registar os pontos principais de cada resposta, poder-se-á fazer um debate, dividindo os alunos consoante as convicções que demonstraram defender e acreditar, contrapondo-as.
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