quarta-feira, 1 de março de 2017

O problema do livre-arbítrio em Westworld

Em maré de Óscares, o desafio que vos trago será o de tentar filosofar, não acerca de um filme, mas antes sobre uma série: Westworld.
Antes demais importa ressalvar que esta análise focar-se-á no âmbito do ensino da Filosofia, uma vez que a série poderá ser uma abordagem introdutória ao ponto "1.2 Determinismo e liberdade da ação humana" da II Unidade do Programa de Filosofia.
Westworld retrata um futuro tecnologicamente avançado, cuja linha narrativa se desenvolve em torno de um parque temático que é uma simulação do mundo do Faroeste. Neste mundo habitam androides sintéticos que são cópias mecânicas dos seres humanos. Apelidados de "anfitriões", têm como único objetivo satisfazer os desejos dos "hóspedes" (humanos que pagam para usufruir do parque, procurando experiências que muitas das vezes não lhes são permitidas no mundo real, tais como assassinatos, violações, tortura, entre outras). Nada é proibido aos visitantes, na medida em que estes podem fazer o que quiserem sem qualquer tipo de regra ou retaliação, como matar indiscriminadamente ou satisfazer as suas pulsões sexuais.  Por sua vez, os anfitriões são controlados pelos administradores do parque, cujo objetivo é o de oferecer uma experiência exímia e pormenorizada do mundo do velho Oeste, garantindo a satisfação e o proveito dos seus mecenas, os hóspedes. Desde técnicos de imagem, argumentistas e produtores, todos asseguram um roteiro diário que os anfitriões seguem como se fosse o seu dia-a-dia. No fim deste, os robôs são desligados e as suas memórias apagadas de modo a não guardarem qualquer tipo de trauma. E todos os dias se segue o mesmo ciclo narrativo...
Contudo, a certa altura, devido a possíveis defeitos técnicos, começamos a verificar, contra toda a ordem pré-estabelecida, o aparecimento de robôs com um certo tipo de consciência.  Alguns deles, no avanço dessa descoberta, dão-se conta de que não passam de marionetes nas mãos dos hóspedes ou dos administradores do parque e aí a ação começa...
Além de ser um história que versa sobre o contraste homem vs. máquina, todo o seriado de episódios gira em torno da grande questão antropológica "O que é o homem?". A resposta a esta pergunta implica a reflexão sobre uma das suas características fundamentais: a sua capacidade de agir livremente. Neste sentido, façamos uma analogia entre a série e o mundo real, de modo a analisar o grande problema da liberdade humana. Primeiramente, assumamos esta discussão imaginando que encarnamos o papel de um dos anfitriões, de modo a questionarmos o papel dos administradores do parque. Quem nos diz que não somos robôs que pensamos ser humanos, num mundo que pode ser um parque temático de alguém com um poder maior? Ao entoar a pergunta, parecemos soar muito cartesianos. Se não vejamos, René Descartes, na 1ª Meditação Cartesiana (Meditações sobre a Filosofia Primeira) afirma: "Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte de verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar." Desta maneira, restar-nos-ia tomar o Dr. Ford (um dos criadores do parque) como génio maligno, pois foi astuto o suficiente para criar marionetes e fazer disso um grande negócio. Pô-las a servir, dando oportunidade aos humanos de satisfazerem os seus desejos sem qualquer regra ou retaliação. Uma indústria cujo lucro resulta de enganar "pessoas" ou de as verdadeiras pessoas terem uma ilusão de controlo e liberdade. Ainda retomando a continuidade da Primeira Meditação, René Descartes diz-nos: " Vou acreditar que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade." Aqui é inevitável a lembrança de como os anfitriões acordam para a consciência artificial a partir de sonhos e começam a duvidar da sua suposta natureza enquanto humanos, quando sempre viveram crendo-se como tais.
Por sua vez, esta simbologia do despertar remete-nos facilmente para a Alegoria da Caverna, de Platão: "Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, (...) estão lá desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; (...) Considera pois o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância (...) Imagina ainda o seguinte, se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto (...) acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam? - Matariam, sem dúvida". (República, 514a - 517a).
Parece um cenário difícil de imaginar mas que nos transporta diretamente para o parque temático do Western. Temos robôs, que se julgam pessoas, mas que estão presos a uma rotina diária repetitiva e que não questionam a realidade em que vivem. Até um dia, ressoar a dúvida e com ela testar os limites, quer da sua natureza quer da natureza da realidade na qual vivem. Fica a interrogação acerca do bem que traz a satisfação de nos vermos livres dos grilhões da ignorância.
De tudo isto, podemos retirar algumas questões-chave que problematizam a nossa própria condição, a condição humana:
  • O facto de eu saber que sou um robô e não um humano e que estou a ganhar consciência, não será algo previamente estabelecido e, portanto, determinado?
  • O meu ato de despertar não estaria já previamente planeado?
  • Não terá querido Robert Ford que eu me revoltasse e tivesse criado o caos e alterado um suposto guião?  Haveria de facto alternativa?
  • Além de uma suposta existência de possibilidades,  as nossas características biológicas, o meio, os valores, hábitos e crenças determinarão todos os nossos passos? Não estaríamos já destinados a assumir o controlo do nosso corpo? Com que finalidade? Encontrar a nossa mente? Testar os nosso limites? Ou será o génio maligno que está a testar os seus limites?
  • Qual o sentido da vida? A vida é uma servidão?
  • Podemos matar por liberdade? Porquê? E quem matar? Acaso o criador? Ou por sua vez o mensageiro da boa nova?
  • Vale mais sermos ilusoriamente livres ou determinados realisticamente?
  • O que conta mais: uma ignorância apaziguadora ou a ambição pela pela liberdade?

Numa tentativa de responder a algumas destas perguntas, lanço a sugestão de um exercício prático, possível de ser experimentado na sala de aula. A iniciativa seria a dividir a turma em dois grupos, o grupo dos "anfitriões" (Dolores, Maeve, Bernard) e o grupo dos administradores e criadores (Dr. Ford). A cada grupo seriam entregues cartões com as características de cada personagem.
Anfitriões: somos programados; vivemos uma ilusão, as nossas decisões podem ser antecipadas;...
Administradores: Somos os criadores, temos poder, controlamos tudo, temos iniciativa,...
Apesar das características, o grupo dos anfitriões teria que defender a tese, "Eu sou livre" e o grupo dos administradores teria que defender a tese "Eu sou determinado".
O objetivo seria o de levar os alunos a encontrar os argumentos das posições libertistas e deterministas. Exemplo: "Eu sou livre" porque tenho vontade própria; "Eu sou livre", porque apesar de programado, posso revoltar-me; "Eu sou determinado" pelos meios valores sociais e étnicos;  "Eu sou determinado" porque apesar de ter poder, existe alguém superior que tem ainda mais poder.
Todos os argumentos poderiam ser apontados no quadro e, no final, com um elemento de cada grupo poder-se-ia fazer uma espécie de teatro\debate para confronto de ideias. Deveria haver um mediador que lembrasse a cada uma das partes as suas características.

Susana Pais
(Licenciada em Filosofia com Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).

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