Remontemos ao início do ano letivo, ao 10º ano de escolaridade e a uma turma nova que se encontra pela primeira vez com um professor de filosofia e perante a própria atividade do filosofar. “O que é a filosofia?”, perguntam os estudantes assim que entram na sala de aula, ainda impacientes e cheios de energia após dois meses de férias onde recuperaram todas as energias... Mal sabem que essa pergunta ainda paira no ar para o próprio professor e que cada filósofo tenta responder-lhe segundo a sua própria conceção e enquadramento histórico... Mas sem hesitar, o professor tenta explicar o que é a disciplina com uma aproximação etimológica, afirmando que o amor à sabedoria e a oposição aos amantes das opiniões é o que nos caracteriza. Contudo, uma difícil tarefa logo surge: distinguir ciência de filosofia. Tal tarefa é-lhe sugerida na tal abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar e, mais tarde, no segundo ponto da quarta unidade do Programa, onde nos embrenhamos no estatuto do conhecimento científico, procurando distingui-lo de conhecimento vulgar, abordando o seu método e questionando a tal “objetividade” das hipóteses evocadas por um cientista.
Contudo, prediquei esta tarefa de “difícil”, uma vez que, na maioria dos casos, se encontram perante nós verdadeiros céticos, gerações que foram levadas a pensar a ciência como algo objetivamente verdadeiro e exato, talvez pela influência da velha distinção entre “ciências moles” e “ciências duras”, onde a Filosofia pertenceria à claque das primeiras e a física, a química, a biologia ou a matemática, parte integrante das últimas. Por esta distinção pode-se, desde logo, entrar num preconceito em relação à disciplina de filosofia, não atendendo à seriedade da sua profundidade reflexiva. É certo que a filosofia não tem o carácter normativo que a ciência tem, na medida em que não pretende prever certos acontecimentos ou formular leis que detenham uma certa universalidade e necessidade - se bem que daqui teríamos que excluir a lógica, dado que as suas leis detêm esta universalidade e necessidade. Mas lógica à parte, quanto mais explicativo for, mais específico será o saber científico, logo, a ciência é vista como um saber explicativo da natureza, enquanto que o saber filosófico é tido como um saber reflexivo em que o homem tenta interpretar as múltiplas linguagens através das quais o real lhe fala, no sentido de melhor compreender a sua situação de ser no mundo. A ciência, ou as ciências, como a matemática, a química e a física são vistas como “ciências duras”, dada a sua cientificidade ser considerada mais rigorosa, enquanto que ciências como psicologia, antropologia, sociologia ou filosofia, são postas do lado das “ciências moles”, devido à sua cientificidade ser considerada mais flexível e maleável, dada a pluralidade paradigmática dentro de cada uma.
Mas será que seria bom ou até mesmo útil ou possível se as ditas “ciências moles”, ou melhor, se as ciências sociais quisessem obter um estatuto normativo e prever acontecimentos ou determinar leis da mente e da sociedade?
«Suponhamos que poderíamos predizer guerras e revoluções com a mesma precisão e rigor com que podemos predizer a aceleração da queda de um corpo no vazio ao nível do mar. [...] Os fenómenos do Mundo que nós abrangemos mediante conceitos como guerra e revolução, casamento, dinheiro e propriedade, não se baseiam sistematicamente no comportamento dos elementos a um nível mais básico, à semelhança dos fenómenos que abrangemos com conceitos como depósito de gorduras e de pressão, os quais se fundamentam sistematicamente no comportamento dos elementos a um nível mais básico. [...] Para um vasto número de fenómenos sociais e psicológicos, o conceito que nomeia o fenómeno é também um constituinte do fenómeno. [...] As características sociais em questão são em parte determinadas pelas atitudes que em relação a elas tomamos. [...] Por conseguinte, não pode existir qualquer equivalência entre o nível mental e o nível da física necessário para tornar possíveis leis estritas das ciências sociais.» (John Searle, Mente, Cérebro e Ciência, pp.101-105).
Não obstante, sublinhe-se que tal distinção desvaneceu com o progresso pedagógico-didático, sendo hoje caduca. Aliás, ainda há pouco tempo o nosso Ministro da Educação aquando a apresentação do novo perfil do aluno que revolucionará o currículo escolar, confessou que «Não há mais – e há muito que não as há – ciências dita “duras” e ciências dita “moles”, saberes essenciais e saberes dispensáveis; conhecimento material útil e cultura acessória e inútil”.» [ver aqui]. Sendo assim, a primazia das ciências em relação às humanidades é cada vez mais uma ideia longínqua e que se deve abandonar, pois todos os saberes merecem especial atenção, sobretudo os que forneçam ferramentas de criatividade, crítica e consciência corporal e artística. Um ponto de vista holístico que possibilita uma formação que visa competências diversificadas como o «raciocínio e resolução de problemas; pensamento crítico e pensamento criativo; desenvolvimento pessoal e autonomia; bem-estar e saúde; sensibilidade estética e artística; saber técnico e tecnologias; consciência e domínio do corpo».
Mas voltando à sala de aula...
Imbuídos no espírito do senso comum, os alunos encaram a ciência como um corpo teórico de conhecimentos certos e indubitáveis que se aplicam na prática, hipóteses que não são sujeitas a críticas, como se a validade de uma premissa se medisse pelo rótulo “foi cientificamente provado”. Ao contrário, encaram a filosofia como um corpo teórico puramente especulativo, onde se debatem temas gerais e abstratos e nunca se alcança uma conclusão unânime ou sequer uma aplicação prática, esquecendo-se que esta teve origem naqueles que se espantaram com o que os rodeava, querendo oferecer uma explicação racional para o que era dito e tido como absolutamente verdadeiro, desmistificando, assim, crenças. A Filosofia não é nem nunca foi pura teoria ou especulação. A Filosofia é reflexão crítica e aplicação prática a temas como a ética, o direito, a estética ou a política. Através das suas metodologias e linguagem própria, os filósofos pensam temas e problemas atuais mas também aqueles que perpassaram séculos e que ainda hoje nos afetam e nos são intrínsecos. Então questionemos: será possível, caso não queiramos que a nossa vida se resuma a uma folha em branco, não filosofar?
Por outro lado, a ciência também obedece a teorias, a princípios que devem ser ponderados e pensados para que a aplicação prática possa ter êxito. Aliás, muitas delas lidam com conceitos que não encontram eco físico (sei o que significa organismo, mas alguma vez vi o organismo? Já para não falar na matemática, que de tão certa que é usa conceitos como o infinito ou os limites no infinito!). Deste modo, a nossa tarefa de esclarecer que o estatuto do conhecimento científico é algo que também se subordina a uma reflexão, a um diálogo, a investigações que refutam os tais "conhecimentos [outrora] indubitáveis" é árdua e o caminho pode até ser doloroso.
Para nos ajudar nesta tarefa, no dia 25 de fevereiro, ouvi no programa Quinta Essência, na Antena 2, uma entrevista ao astrofísico David Sobral, onde este afirma que a ciência se sujeita a interpretações e especulações.
Ao minuto 11:33, David Sobral afirma que:
"[...] há sempre 2 imagens [da ciência]: há uma imagem da ciência, que é aquela que está nos manuais escolares, como fixa e estática - que é completamente errada -, mas que às vezes há a tendência de mostrar a ciência como uma coisa que se estuda e feita. A ciência é precisamente o contrário, é sermos capazes de estar constantemente a reescrever aquilo que nós sabemos e percebermos que as coisas são sempre questionáveis e que é sempre preciso continuar para melhorar o nosso conhecimento."
Uma perspetiva de um cientista sobre a ciência que vale a pena ouvir do início ao fim e dar a conhecer. Afinal, os cientistas também propõem, também pensam, também conjeturam, também erram, também testam, também verificam, também falham, também imaginam, também questionam…
Seremos assim tão diferentes desta comunidade?
Será que o caráter frágil das ciências sociais não será ao mesmo a sua maior força?
Não será esse caráter a principal fonte de curiosidade de todos os homens?
Não quereremos conhecer-nos melhor a nós próprios e ao que nos rodeia?
Não precisaremos de nos conhecermos para, depois, descrevermos e prevermos?
Não precisaremos de um pensamento criativo e artístico ao mesmo tempo que precisamos de um pensamento exato e numérico?
Não serão todas as áreas necessárias, devendo merecer a mesma atenção e prestígio?
Até que ponto a sua distinção passa pela distinção entre teoria e prática?
Não haverá mais pontos de semelhança do que as aparentes diferenças?
Filosofemos então...
Exercício prático:
Proponho que, em contexto de sala de aula, o professor peça aos alunos que descrevam a ação do ser humano no mundo (por exemplo: lê, escreve, observa, sonha, dança, canta, investiga, constrói, sente...). À medida que os alunos vão enumerando, o professor poderá convidar um aluno a levantar-se e ir anotando no quadro todas as respostas. Depois, os alunos são convidados a agrupar as ações em categorias que corresponderão a um tipo de conhecimento (por exemplo, dançar pertence a um estudo artístico enquanto que sonhar poderá pertencer a um estudo psicológico). Depois de categorizadas, todas as áreas serão expostas a um escrutínio coletivo acerca das suas mais-valias e fragilidades e aí, o professor mostrará alguns cartões que ilustrarão algumas das teses defendidas em sala de aula. Por exemplo, mostrando os cartões com as imagens que apresento aqui em baixo, poder-se-á colocar primeiramente a questão de qual/quais área(s) está/estão representadas em cada imagem e, depois de identificada(s), pede-se aos alunos que completem a frase "o mundo sem _________ (ex:biologia) seria/não seria/não teria _____________________", deixando a sua imaginação fluir.
O objetivo é que o aluno conclua que todas elas têm um papel fundamental se quisermos compreender o homem e o que o rodeia e que a reflexão crítica é uma constante em todos os tipos de conhecimento, sendo a base da própria disciplina de Filosofia! Além disso, o aluno entenderá que mais depressa as ciências humanas contribuem para a sua formação, para a educação, para "alimentar a alma" (parafraseando Platão), enquanto que as ciências naturais dirigem-se para o aumento do conforto social, do que é físico e palpável, contudo, qualquer uma se demonstra indispensável.
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