«A actual organização universitária, que data fundamentalmente de 1918, é duma voracidade insaciável. Ela devora o tempo, a coisa mais preciosa da escolaridade de mestres e estudantes. Ter tempo livre, desperdiçá-lo em curiosidades problemáticas, invertê-lo em leituras fatigantes e praticamente inúteis, aplicá-lo na indagação e na porfia de ideias e de factos, são condições vitais do exercício do magistério e da formação do homem, que jaz potencialmente no estudante.
Sempre que inicia a lição, o professor arrisca o seu crédito moral. Uma lição mal feita, a escamoteação das dificuldades, a acrobacia de palavras e a versatilidade dos juízos subvertem numa hora, e para sempre, o crédito junto dos auditores. Por isso, o prestígio dos professores é como o respeito pelo pudor das mulheres: uma vez perdido não se recupera.
Para propiciar o volátil ambiente moral da cátedra a lei concede aos professores universitários a liberdade de poderem faltar algumas vezes sem justificação, e tal liberdade é o reconhecimento público da necessidade do tempo e da fragilidade do magistério. Simplesmente, a organização actual, repleta de cadeiras e de cursos e servida por um pequeno quadro de professores, destrói de facto o que reconhece em teoria.
Dizem-se e explicam-se em cinco minutos os resultados de muitas horas laboriosas, e a verdade triste e incontestável é que o professor, que só quer ser professor, não usufrui hoje as longas horas disponíveis.
Percorra-se com espírito equânime o plano de estudos de algumas, senão de todas as Faculdades, e a peçonhenta verdade da carência de tempo livre, para mestres e estudantes, surgirá com profunda evidência. Atirado de uma cadeira para outra cadeira, de um curso para outro curso, das aulas teóricas para as aulas práticas, o professor é inexoravelmente compelido à burocratização do magistério, ao ensino fácil e à repetição - coisas terríveis para mestres e alunos.»
Joaquim de Carvalho, Obra Completa, Lisboa, Gulbenkian, 1989, vol. VI, p. 292.
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